terça-feira, 31 de outubro de 2017

1924: António Sérgio a Castelo Branco Chaves


[1924]

Meu caro Amigo:

Pensando no caso, acho que é melhor que seja o meu Amigo quem escreva ao Sardinha. Peço-lhe que enuncie as seguintes verdades:
Primeira. Não quero, não quererei nunca atacar o Sardinha. Pretendo defender o o prestígio da secção crítica da «Lusitânia», que o Sardinha atacou, mandando para a revista um artigo que é um desmentido, de lés a lés, do meu artigo na «Lusitânia» sobre o Múrias. O Sardinha, se fosse discreto, publicava aquilo na «Nação Portuguesa».
(Aqui para nós, e só para nós: o facto é tanto mais estranhável quanto fui eu que concebi e fundei a «Lusitânia». O Afonso e o Sardinha entrariam para o elenco redactorial da revista porque o Afonso mo pediu. Para ver quanto o acto do Sardinha foi pouco generoso, suponha a hipótese de eu sair vencido na polémica. Eis um homem que entra a pedido numa revista criada por mim, para, uma vez lá, minar o prestígio literário de quem gentilmente o recebeu.) Em resumo: o atacante (sem nenhuma necessidade) é o Sardinha. Eu defendo-me, e vou fazê-lo no tom mais amável e amistoso.
Segunda. Não manifestei o desejo, por mim, que o artigo não fosse publicado. Não me obriguem ao ridículo de fazer notar ao Sardinha que não tenho medo da crítica dele. Pelo contrário. Logo disse que, pessoalmente, estimava a publicação do artigo. Para a unidade e prestígio da «Lusitânia», porém, e para evitar os cancans do respeitável público, achei melhor que o artigo do Sardinha fosse publicado na «Nação», e a minha resposta na «Seara». Evitar luta dentro da «Lusitânia». A «Lusitânia» deveria ser reservada para a expressão daquilo que nos é comum; a «Nação» e a «Seara» para a amistosa discussão das divergências. Este meu modo de ver obteve até hoje o assentimento de todas as pessoas que o conhecem, excepto... não sei se realmente há alguma excepção, porque ninguém até hoje, por palavras, mo contestou claramente, depois de eu o explicar com minúcia.
Ora aí está. Não sou inimigo de ninguém, não quero atacar ninguém. Defendo e tenho defendido Ideias que julgo verdadeiras e úteis a Portugal. Posso achar más certas ideias do Sardinha, ou do amigo do Sardinha, o Sr. Múrias, mas sendo e continuando a ser amigo do Sardinha e dos seus amigos. Tenho mostrado bem que não me importo de desagradar e cabe por isso dizer que tenho para com o Sardinha a melhor boa vontade deste mundo, sem que possam duvidar da minha franqueza. Não cuido precisar do Sardinha para coisa nenhuma, não cuido que a inimizade do Sardinha me possa prejudicar, pessoal e literariamente: sou portanto absolutamente sincero quando digo que quero ser amigo do Sardinha, que não tenho o menor desejo de o atacar ou de lhe causar o mais pequenino prejuízo no seu prestígio de historiador. E isto não é virtude; é o reconhecimento intelectual de que há espaço para toda a gente neste mundo, que enfim de contas nos encontramos todos com todos, e não só com os nossos contemporâneos, e que tanta razão tenho para temer que me faça sombra o Sardinha como que me faça sombra o Camões. De mais, não me considero homem de letras: sou um homem que, tendo meia dúzia de convicções, usa da letra redonda como o melhor meio de as divulgar entre os seus compatriotas. Ao próprio Fidelino, que me pretendeu insultar, não me seria, eu só desejo que se emende, e que passe a escrever com mais acerto. Ser inferior a um génio chamado Sardinha, ou chamado Fidelino, não me seria mais doloroso do que ser inferior a um génio chamado Espinosa ou chamado Platão. E por ser verdade o escrevi.
Et nunc et semper

A. Sérgio



Cartas de António Sérgio a Castelo Branco Chaves: 192541955
(edição de Luísa Ducla Soares)


Nota - Os homens da Seara Nova  e do Integralismo Lusitano, convergiram por vezes, em
publicações comuns, apesar da distância política. Esta carta é disso exemplo. Castelo Branco Chaves começou por ser integralista e monárquico, tendo participado na Revolta de Monsanto, em 1919. O primeiro livro, ensaio sobre Fialho de Almeida (1923) fora prefaciado por António Sardinha, que morrerá em 1925. Será um dos mais próximos colaboradores de António Sérgio.


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

10 de Julho de 1849: Camilo Castelo Branco a José Barbosa e Silva

Ill.mº Amigo


O abraço, que se dignou transmitir-me, por via do nosso Carneiro, devo retribuir-lho, acompanhado destas quatro linhas fluentes e sem presunção, se tantas são bastantes para afiançar a V. S.ª o muito apreço em que tenho os seus favores.
Vai esse jovem enamorado mendigar-lhe as suas distracções: eu creio que lhe serão de grande proveito, e, porventura, de instrução, que ele parece desejar. Espero um dia para cumprir uma promessa. Os banhos de mar, que a Medicina empiricamente me aconselha, estorvam-me o maior número de outras ocupações: -- verdade é, que das mais gratas ao coração, já tenho cedido a beneplácito de uma espécie de sezão moral que me apoquenta.
Agradeço o empréstimo do livro.


Disponha do
De V. S.ª amigo verdadeiro
Camilo Castelo Branco

10 de Julho de 1849

Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva, vol. I, Lisboa, Livros Horizonte, 1984.
editor: Alexandre Cabral

Nota - Radicado em Viana do Castelo, José Barbosa e Silva, tal como o resto da família, foi um amigo dilecto de Camilo: amigo, confidente e auxiliador em momentos de aperto, como revelou o incansável Alexandre Cabral. Em baixo, uma carta inicial, ainda distante do aprofundamento dessa amizade. 

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Pará, 6 de Dezembro de 1655: o Padre António Vieira a D. João IV


 Senhor:

     Com esta remeto a Vossa Majestade a relação do que se tem obrado na execução da lei de Vossa Majestade sobre a liberdade dos índios. Muitos ficam sentenciados ao cativeiro por prevalecer o número dos votos mais que o peso das razões. Vossa Majestade, sendo servido, as poderá mandar pesar em balanças mais fiéis que as deste Estado, onde tudo nadou sempre em sangue dos pobres índios, e ainda folgam de se afogar nele os que desejam tirar perigo aos demais. Contudo se puseram em liberdade muitos, cuja justiça por notória se escapou das unhas aos julgadores. Tudo o que neste particular, e nos demais se tem obrado a favor das cristandades, e em obediência da lei e regimento de Vossa Majestade, se deve ao governador André Vidal, que em recebendo as ordens de Vossa Majestade, se embarcou logo para esta capitania do Pará, a dar à execução muitas coisas, que sem a sua presença se não podiam conseguir. Se o braço eclesiástico ajudara ao secular, tudo se pusera facilmente em ordem e justiça; mas, como as cabeças das Religiões têm opiniões contrárias às que Vossa Majestade manda praticar, estão as consciências como dantes, e o que não nasce destas raízes dura só enquanto dura o temor. Já dizem que virá outro governador, e então tudo será como dantes era; e eu em parte assim o temo, porque todos os que cá costumaram vir até agora traziam os olhos só no interesse, e todos os interesses desta terra consistem só no sangue e suor dos índios.
     De André Vidal direi a Vossa Majestade o que me não atrevi atègora, por me não apressar; e, porque tenho conhecido tantos homens, sei que há mister muito tempo para se conhecer um homem. Tem Vossa Majestade mui poucos no seu reino que sejam como André Vidal; eu o conhecia pouco mais que de vista e fama: é tanto para tudo o demais, como para soldado: muito cristão, muito executivo, muito amigo da justiça e da razão, muito zeloso do serviço de Vossa Majestade, e observador das suas reais ordens, e sobretudo muito desinteressado, e que entende mui bem todas as matérias, posto que não fale em verso, que é falta que lhe achava certo ministro grande da corte de Vossa Majestade. Pelo que tem ajudado a estas cristandades lhe tenho obrigação; mas pelo que toca ao serviço de Vossa majestade (de que nem ainda cá me posso esquecer) digo a Vossa Majestade que está André Vidal perdido no Maranhão, e que não estivera a Índia perdida se Vossa Majestade lha entregara. Digo isto porque o digo neste papel, que não há-de passar das mãos de Vossa Majestade, e assim o espero do conhecimento que Vossa Majestade tem da verdade e desinteresse com que sempre falei a Vossa Majestade, e do real e católico zelo, com que Vossa Majestade deseja que em todos os reinos de Vossa Majestade se faça justiça e se adiante a fé. A muito alta e muito poderosa pessoa de Vossa Majestade guarde Deus como a Cristandade e os vassalos de Vossa Majestade havemos mister. Pará, 6 de Dezembro de 1655.
António Vieira




Cartas
(edição de Mário Gonçalves Viana)


Nota -  Missiva que faz jus à grandeza do Padre António Vieira, como homem, sacerdote, retórico e diplomata. Apóstolo dos índios, assim lhe chamam, não logrou, infelizmente, a mesma diligência relativamente aos escravos africanos. Referência a André Vidal de Negreiros (1606-1680), figura-chave do Brasil colonial.
Nota (10/XII/2017) A ler, no último JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, #1231,, 6-XII-2017, um pertinente artigo sobre a questão,  de José Eduardo Franco, Pedro Calafate e Ricardo Ventura, «Negros, ameríndios e a questão esclavagista em Vieira».

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Estocolmo, 30 de Julho de 1641: Cristina da Suécia a D. João IV

Nós Cristina por graça de Deos Rainha eleita, e Princeza herdeira dos Suecos, Godos e Vandalos: Grande Princeza de Finlândia, Duqueza de Ethonia, e de Carelia, Senhora de Ingria, &c. Ao Serenissimo Princepe, Irmaõ, parente e amigo nosso muito amado D. Joaõ, o quarto do nome, Rey de Portugal, dos Algarves, daquem e dalem mar em Africa, Senhor de Guiné, e das Conquistas, navegaçaõ, e Comercio em Ethiopia, Arabia, Persia, e India, &c. Saude, e prosperos sucessos.
Serenissimo Princepe, Irmaõ, parente, e amigo muito amado, o Embaixador do Conselho de V. Magestade, o Illustre, Magnifico, e generoso, de nós sinceramente amado, D. Francisco de Souza Coutinho, ha pouco, que chegou, pera nos manifestar alguns negocios, que lhe foraõ cometidos. Nós pello grande parentesco, e amizade, que por muito seculos ouve entre nossos predecessores gloriosissimos, os Reys de Suecia, e de Portugal, e entre huma, e outra naçaõ, conhecendo o divino beneficio da restituiçaõ feita a V. Magestade de seu hereditario Reyno, retido por alguns annos injustamente dos Reys de Castella, recebemos de boa vontade, o dito Embaixador, e delle ouvimos com muito gosto, o que pareceo a V. Magestade cometerlhe, assi pera nos declarar a rezaõ, e pera explicar o modo de restituiçaõ na dita Coroa, como também pera que acabada toda a antiga inimizade, por cuja culpa até agora esteve suspensa a amizade, e o comercio, se restituisse de ambas as partes, a sincera confiança, e firme amizade, e tornassem à antiga liberdade, o trato, e comercio antigo. [...] nós pella amizade restaurada, e pello trato do comercio restituido entre os subditos, e vassallos de huma, e outra naçaõ, avemos de fazer por amor de V. Magestade quanto nos for possivel por consolidar, e augmentar toda a boa correspondência. No maes com muito affecto encomendamos à divina protecçaõ a V. Magestade. Feita em nosso Paço Real Hocholmense, aos 30 de Julho de 1641.

Os Tutores, e Administradores da Sacra, e Real Magestade, e do Reyno de Suecia.

Petrus. Cõde em Jacobo de la Guardie Carolo Gylde 'hielm
Wissingsborg. R. S. Manichus. R. S. Ammirantins.

R. S. Drotzetus.

Aurelius Erenstierna
R. S. Cancelario

Gabriel Exenstiern. L. B. in
Marebij, & Lindholm
R. S. Thesaurario.

ILuís de Freitas Branco, D. João IV, Músico, Vila Viçosa, Fundação da Casa de Bragança, 1956.


Nota - Reconhecimento  da restauração da independência de Portugal, com troca de embaixadores, um dos muitos sucessos diplomáticos da Restauração, que teve em D. Francisco de Sousa Coutinho um dos principais protagonistas, em missões muito arriscadas. Basta lembrar que todos tinham a cabeça a prémio, e que a diplomacia e o poderio espanhol não estavam de braços cruzados. Cristina da Suécia, última representante da dinastia Vasa (abdicou na década seguinte, para converter-se formalmente ao catolicismo) seria especialmente sensível à luta de D. João IV,  uma vez que a sua casa fora forjada na luta contra o domínio dinamarquês, no século anterior).