sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Amesterdão, 24 de Agosto de 1530: Damião de Góis a D. João III

Senhor:

     Per um correio que chegou a Anvers a 22 dias deste mês, recebi uma carta de V. A., na qual manda que somente se façam os panos dos doze meses, porque dos outros já não tem necessidade. Eu como lhe, Senhor, escrevo pola frota, recebidas suas cartas, logo mandei fazer assi os doze meses, como os doze panos grandes e reposteiros e coxins, e sobre tudo tenho dado quase cem escudos (?) de grossos de sinal, pelo que não será bem faisable se deixarem de fazer; eu creio que depois que V. A. os vir feitos folgará de nisso ter despeso dinheiro, porque os patrões per que se fazem eu os vi são muito bons. Pela frota mando as cousas que me V. A. mandou pedir, e assi uma folha que cá estava a iluminar, que é o começo do livro, e assim um dos livros iluminados. E o outro não vai por a escritura não ser ainda acabada, que a iluminura já a tenho em minha mão.
     De João Carlos tenho recebidos os quatrocentos cruzados que me per sua letra mandou, e assi recebi mais de Jorge Lopes pela conta dos trezentos mil-réis que me nele manda dar Luís Ribeiro, seu tesoureiro, outros quatrocentos cruzados de que lhe tenho dado três conhecimentos. Pela armada escrevo a V. A. como pera se acabar de fazer toda a tapeçaria haverá mister ainda de mil cruzados, além de tudo o que me cá manda dar, porque os quatrocentos cruzados de João Carlos se desprenderam quasi todos nas cousas per sua guarda-roupa, como verá per a conta que mando disso a Charles Anriques pela frota, e somente me ficam pera tudo os trezentos mil-réis. Nosso Senhor lhe acrescente os dias de vida em real estado. De Amsterdam, aos 24 dias de Agosto de Agosto de 1530.

Damião de Góis



in Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal, 2.ª ed., Lx, 1985

Nota - Dos encargos & apertos dum funcionário no estrangeiro. Com 28 anos, Damião de Góis, futuro cronista e guarda-mor da Torre do tombo, amigo de Erasmo e de Dürer, que o retratou, era secretário da feitoria portuguesa na Flandres.


quarta-feira, 8 de novembro de 2017

7 de Fevereiro de 1886: Camilo Castelo Branco a Tomás Mendes Norton

7/2/86

Exmº Amigo

     Parecem-me excelente e logicamente derivadas as suas conjecturas sobre a influência de Cardeal D. Jorge nas obras do seu mosteiro. pouco importa que ele haja morrido alguns anos antes da ornamentação interna do edifício.
     Noto que V. Exª esgaravata tudo que possa ter peso na balança das probabilidades. Ainda m'mo que não vingue levar a convicção aos que duvidam por um pirronismo sistemático, decerto nos dará um livro recheado de conhecim'tos da arte e da erudição histórica.
     Estou padecendo m'to, e escrevendo sempre, a ver se desequilibro as dores, concentrando o fluido nervoso na cabeça.

De V Exª.
Obrig'mo Amº

Camilo Castelo Branco

Nota - Dadas à estampa por um seu neto, Luís Norton, as cartas de Tomás Mendes Norton a Camilo versam sobre uma hipotética fantasia de o mosteiro medieval de Refojos do Lima dever o traço do seu restauro e as linhas de alguns azulejos respectivamente a Bramante e a Rafael, por intermediação do Cardeal Alpedrinha, D. Jorge da Costa, grande figura da Igreja Católica. Essa atribuição, contestada pelo organizador deste voluminho de uma dúzia de missivas de Camilo, não obteve acolhimento posterior, sendo atribuídas as ousadas propostas pelo descendente a um espírito peculiar composto por romantismo tornado obsessão, que levaria o proprietário à ruína, não se ocupando de qualquer outra coisa que não fosse a comprovação dessa sua teoria, publicando, em 1888, uma obra, vertida para o francês: Études sur les Oeuvres d'Art de Raphael Sanzio d'Urbino au Monastère de Refojos do Lima. A esta ideia, ao que parece mirabolante, dará Camilo, amigo do pai do correspondente, todo o lastro.

domingo, 5 de novembro de 2017

1972: Ferreira de Castro ao director do «Notícias de Chaves»


Senhor Director:

     Chamaram a minha atenção para um artigo publicado no «Notícias de Chaves», onde Aquilino Ribeiro e eu somos acusados de termos agredido, em romances nossos, o concelho de Montalegre.
     Creio que se trata de dois fortes equívocos. Que eu saiba, o grande Aquilino nunca escreveu livro algum sobre aquela região e, no meu romance «Terra Fria», pratiquei um acto de solidariedade humana com o povo de Barroso, então completamente abandonado ao seu destino. Uma solidariedade que me exigiu alguns sacrifícios, diga-se sobriamente de passagem.
     E assim me parece que só quem não souber ler ou não souber compreender a intencionalidade do que lê poderá tomar como agressão uma obra de profundo amor pelo nosso semelhante.
     Como este não é o caso do articulista*, penso que as suas palavras são consequência duma leitura apressada. De todas as maneiras, considero-as injustas e se ele tiver ainda alguma dúvida, que leia o prefácio da edição especial da «Terra Fria», publicada em 1966.
     Julgo, aliás, e outras pessoas julgam também, inclusive categorizados transmontanos,, que o meu romance, sobretudo por haver sido publicado com ilustrações em rodapés de «O Século», antes de sair em livros, contribuiu para algum progresso que se tenha dado desde essa época, numa terra de tão belos aspectos e num povo boníssimo, que bem mereciam melhor sorte e que os detentores do poder pareciam ignorar inteiramente.
     Com antecipados agradecimentos pela publicação desta carta, envio-lhe, sr. director, as minhas saudações corsiais.

Ferreira de Castro 





in Barroso da Fonte, Diálogo com Ferreira de Castro -- A Propósito do Romance Terra Fria, Braga, Editora Pax, 1973.

Nota - Parece que causou controvérsia a questão do adultério da protagonista de Terra Fria (1934) na então longínqua Padornelos. Ao contrário do que pode parecer, a paciência de Castro foi infinita, em face dos pundonores (provincianos) desgravados.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Espinho, 3 de Maio de 1903. Manuel Laranjeira a João de Barros

Ex.mº Sr. João de Barros:

     Só agora posso responder à sua segunda carta. Perdoe-me. Não foi por desmazelo meu. Razões de família apenas. Creia-me e perdoe-me.
     Deixe-me dizer-lhe: eu compreendo os íntimos motivos que o levaram a dar-me esclarecimentos sobre a tal carta. Bem que desnecessária para mim, que me prezo de nunca alicerçar opiniões sobre areia, essa explicação compreendo-a. Eu teria procedido igualmente, presumo.
     É que nós vamos atravessando tempos difíceis, em que cada um que preze a sua honestidade sente precisão de definir a sua atitude, para não ser confundido com as biltres trivialidades que para aí fervilham. Só as nulidades morais se não estimam -- ...ou estimam-se no seu valor real, que é nenhum. Eu teria feito o mesmo, repito. Porque V. Ex.ª não é meu amigo, como eu não sou de V. Ex.ª -- para que qualquer de nós tivesse uma fé desabalada na lealdade de carácter do outro. Nós conhecemo-nos apenas. Sabemos um do outro só aquilo que um outro amigo nos fez saber. Comigo, pelo menos, o facto dá-se assim. E apesar de as melhores informações que tivéssemos um do outro, apesar até de alguma simpatia que espontaneamente pudéssemos ter um pelo outro -- um resíduo de dúvida era permitido sempre, sem que nela houvesse ofensa. Por isso a sua carta não foi importuna. Antes foi....................... -- Mas não acha V. Ex.ª que não vale a pena estar a perder tempo com uma tão insignificante insignificância? Para mim, a tal carta não significou mais do que um espirituoso xeque-mate, espirituosamente dado na erudição vaidosamente paleográfica do meu amigo. Olhe: peço-lhe que faça como eu: não pense mais nela.
     E para findar: dá-me V. Ex.ª um sumo prazer em continuar a importunar-me.
     Pelo que me subscrevo de V. Ex.ª inútil criado

Espinho, 3 de Maio de 1903.

Manuel Laranjeira






Cartas de Manuel Laranjeira, Lisboa, Relógio d'Água, s.d.
editor: Ramiro Mourão (19439

Nota - Desconheço o motivo da carta (a edição é nula a este respeito), porém percebe-se a chã frontalidade de Laranjeira, essencial para prevenir futuros quiproquós, e nesse aspecto a limpidez da missiva é evidente.